Um todo encarnado.
O sol, em constante vermelho de fogo, espanta as esperanças e deixa de dote aos viventes – curtidos e escaveirados – apenas um existir teimoso e instintivo.
O Cruiri por inteiro, como de resto toda a região a muitas léguas em derredor de Igaratu, já arqueja sob o bafo desesperado de uma seca continuada e inclemente.
A fazenda Cruiri escancara a desolação de um quase abandono. A casa descuidada, com suas paredes irisadas, junto aos currais em desmazelos de cercas e cochos e estacas caídas, forma o desenho de um quadro de desalento. Não obstante a lida teimosamente improfícua, a vegetação esgarranchada demonstra a realidade de dias em que o desespero dá a tônica e a tristeza é palavra de vasto e ininterrupto consumo. Nessa realidade o tempo confere as tantas histórias que recontam outras histórias que nem dão conta de um passado já em esquecimento. Era de dificultosas travessias por pesadelos, abusões e sonhos perseguidos. Contos vagos de acontecidos estranhos, que a vida embaralha no tino de quem perde o sequenciado duro das labutas.
O entardecer, quando vem, é lento e o silêncio anuncia a noite morna e os viventes cismam na repetência eterna de desejar a brisa do Aracati varando o breu.
Ciclo renovado.
Contrariando os prognósticos da fatalidade, a noite adulta arrasta surpresas. O cio da natureza abranda a rotina de quentura, como a reverenciar a chuva madrugadeira que anuncia um tempo apaziguado. Inesperadamente, quando a insensibilidade domina-abarca por completo os ânimos, a chuva irrompe madrugada à dentro, fazendo retornar às cabeças simples uma nervosa alegria, em surto contagiante.
A figura hierática do velho ganha o alpendre atendendo ao chamado da chuva. Com o sono estancado, Pedro Isgorogota arremeda um sorriso na boca desdentada e rememora coisas enredadas em labirintos inescrutáveis.
É a chuva! Chuveirão! É a chuva! Ela é santa... Eita que é água das graúda! O povo inté pode acreditá na vida. Povo? Adonde que é o paradeiro desse mundão de povo? Cadê Libório, Adeodato, aquele peste dos seiscentos diabos?! Cadê a Nhana, a Luzia, Etelvina?... Em que cafundó foi se metê esse excomungado do Valmir Luma? O Homem Santo e o seu povo... Nem ele me esperô... Avalie, se isso tem cabimento e eu... Pai Januário é que ‘tava certo... Nos acertos ‘tava amontado. Ora, se... Ele era home de num fazê questã por coisa pouca. Num era de ninharias... Menino, eu era, mas nunca que s’esqueço daquele tempo. A caduquice é o cão! Alembro... Ele gostava de molecar mais eu e o Julião. Agradava de se rir de nóis. Arre égua! Quando a chuvarada batia nas roça, quando a água muita invadia os baixios, era alegria... Alegrança só! Nunca que pai Januário se amofinô com chuva, mesmo quando era desmasiada... Quando alagava e apodrecia as roça. Ele, nem que te ligo...
– Dez vez perdê a podê de chuva. Num conformo é perdê pra seca.
Ah, pai Januário... Salatiel, Galo Doido, ‘Droaldo, Mariano, Luca, Quincas, Januário filho, os filhos... Ah, Deus... Onde estão todos? Onde se esconderam Julião, Pita, Florenço, Quelé, esse índio desgovernado, meus filhos... Adonde que foi desandá o Luca? Qual paradeiro torto ele foi inventá? Em que grota se enfurnaram Adeodato e os cabras safados do mundo? Eita, eita! É chuva das maió, de alagá o mundo! Chuvarada pai d’égua! Coisa de alegrá os ói e os peito de quem já secou as alegria dessa vida agoniada. Essa, pai Januário, tinha que ver... Ah, Januário, meu pai... Ah! Januário, meu filho... Que fim é esse que demora tanto e que nunca dá sinal?
Passos e gestos alongados conduzem Pedro Isgorogota para o alpendre e dali para o terreiro, sob a chuva e o riso reencontrado. Passos e gestos que carregam o fardo centenário dos seus fantasmas e abusões, suas lembranças embaralhadas na caduquice avançada.
Um corisco alumia-encandeia e torna imprecisa a vista de quem observa o passado por sobre o ombro. Os acontecidos desfocados na memória insana, mas que merecem uma última tentativa de reagrupá-los num aprendizado de absurdos.
Teias e névoas.