Eu ensejo empunhar navalhas
pra desvendar escrituras
da verdade escondida
nas dobras das travessuras.
(Criaturas silenciosas – Mano Ferreira e Marcelo Cavalcante)
Abordando o tema da privacidade, o professor de ética jornalística, Eugênio Bucci, traça um paralelo entre os sequestros reais e os realizados pela indústria de entretenimento. Acha o professor que “Sequestros reais e circo praticamente se equivalem”, uma vez que os voluntários que submetem aos ditames dos reality shows se submetem ao sequestro do “espetáculo, sacrifica a própria liberdade, vendendo-a por um dinheiro que nada mais é que o resgate às avessas. E ainda espera tirar lucro extra: a fama”. Pondera o articulista que os participantes de tais excrescências buscam “ficar em evidência para ficar em evidência”, e que “demonstram um pantagruélico apetite para a fama”.
Outro aspecto a considerar, apesar de claramente patenteado na atual sociedade de massa, é a pergunta candente que não é levada em conta em seus cruciais desdobramentos: a que se deve o sucesso dessas pessoas? É na forma como este processo de celebrização instantânea de qualquer Zé Mané ou Maria Chuteira ocorre, devemos buscar as explicações na lógica da indústria cultural que (como qualquer outro empreendimento capitalista) tem como razão precípua, ou mesmo única, o lucro. Transformadas em mercadorias, as celebridades não necessitam de talentos especiais, proezas de raciocínio, realização de uma obra ou mesmo raciocínio minimamente articulado. São como ícones moto-contínuo que se alimentam e retroalimentam da fama, mesmo que construída sobre imensos vazios.
Acertadamente, mesmo que por artes de óbvia conclusão, Bucci nos alerta para os perigos do “ser alguém na vida” a qualquer preço, uma vez que serve de “critério entre certo e errado”. Este paradigma da sociedade de massa implica valores sociais na medida em que “a fissura pela intimidade atropelou de vez o zelo que uma vez tivemos com a educação dos nossos filhos e com a boa formação das nossas crianças”.
Há que se considerar que a consecução da mágica comunicacional da celebrização instantânea e injustificada necessita de imensas doses de mistificação e manipulação do mundo real que se traduz numa maciça overdose de alienação planejada. Daí a conclusão sombria de que a aposta dos empresários dos meios de comunicação de massa, por falta de criatividade e por força do lucro fácil, está francamente baseada na deseducação e bestialização do povo que prova das suas mercadorias, com e apesar dos rigores do Código de Defesa do Consumidor.
Há que se considerar, ainda, o poder de manipulação do simbólico que logra estabelecer a histeria sócio-psicológica planejada em função de personagens ou acontecimentos medíocres muito além da razoabilidade e tolerância da sã normalidade das medidas.
Mesmo e apesar da tentativa poética e da sua obviedade, “sonhar, já é alguma coisa mais que não sonhar”, torna-se um axioma necessário, uma imposição imperativa destes tempos de extremo e puro mundanismo.
Detectamos a indústria de entretenimento produzir e reproduzir continuadamente um mundo paralelo grávido de infantilização e brutalização dos bens simbólicos, totalmente divorciado da realidade, pois que direcionado para a indução ao consumo indiscriminado de mercadorias.
Neste intento, o apelo dos meios de comunicação de massa – os visuais por excelência – torna-se irresistível tanto individual quanto coletivamente. Elaborada por Marshall McLuhan, a ideia de uma aldeia global na qual “a mensagem é o meio” se robustece em simples observações empíricas do comportamento de pessoas ou multidões quando confrontadas com as câmeras onipresentes, espalhadas por todo o planeta.
Final de campeonato. A televisão filma a concentração das pessoas em uma praça de Curitiba onde foi instalado um imenso telão. A multidão, em frenesi contido, assiste ao jogo em angustiosa expectativa. Essa tensão é quebrada automaticamente não em função do extravasar por um gol ou lance espetacular, mas sim quando a multidão percebe que está sendo filmada e veiculada. Quando aparece na tela, com ou sem lances motivadores, a plateia pula alucinada, como se para mostrar à parafernália eletrônica que está torcendo. Desta forma, uma disputa esportiva – em relação às reações da plateia – passa a coadjuvar a transmissão televisiva, esvaziando-se de conteúdo e motivação principal.
Em seu aspecto individual, a principal marca da indústria do entretenimento se traduz na indução e premiação à transgressão enquanto elemento prenhe de qualidades positivas e, sob esta perspectiva a bundalização e o escândalo produzidos ganham a primazia fácil, pois que de decodificação tão instantânea quanto leite em pó.
A cultura da primeira metade do século XX – apesar da liberação dos costumes e a consequente arte modernista que propiciou exponencial crescimento quantitativo da produção artística – não se mostrou adequada ao atendimento das demandas das novas formas de comunicação de massa, de recorte nitidamente universalista e inclusivo. Daí, a mediocrização cunhada por Leminski, como resultado (in)consequente da produção e divulgação inerentes à indústria cultural.
Histórico não autorizado
A despeito dos esforços e das boas intenções, que me perdoem os cientistas sociais – que se reputam sóbrios analistas das mazelas humanas –, mas andam comendo mosca ao descartarem o imenso e inesgotável campo de estudos que nos é diuturnamente oferecido pelas atividades televisivas produzidas, reproduzidas, imitadas e copiadas pelo país afora. Apesar do que andam fazendo com a sociologia, desde a promoção a mixórdia teórico-financiadora e até a sua transformação em verdadeiro vale-tudo digno de risíveis telecatchs do “Gigantes do Ringue”, nem tudo está perdido e a luz no fim do túnel pode ser o trem na contramão. Quanto a este dilema, recomendamos uma postura esperançosa, afinal vivemos de esperanças desde que Cabral aqui aportou.
Devemos reconhecer que a televisão brasileira não é, absolutamente, diferente das coirmãs espalhadas pelos mundos reais e virtuais do planeta. Tem os muitos vícios e as poucas qualidades que as televisões costumam exibir aos milhões de telebobos de carteirinha.
Este perfil, retrato da indigência criativa, pode ser explicado e justificado se seguirmos (mesmo que desordenadamente) a recomendação do velho barbudo de submetermos o objeto de estudo a uma crítica de caráter histórico-dialético. Isso implicaria em um profundo mergulho num verdadeiro pesadelo histórico-cultural nos primórdios da televisão no Brasil, de Chateaubriand ao Bispo Macedo, sem olvidar os Silvios Santos do oportunismo e da camelotagem predatória.
A verdade é que esta história dos primórdios da TV, sempre nos é contada sob a perspectiva ufanista de um pioneirismo basbaque que transforma alguns vagabundos em heróis da resistência. A verdade é que, enquanto engatinhava, a TV brasileira era menos respeitada que casa de tolerância e nela foram acolhidos os párias e desempregados de todas as áreas e de variadas cepas. Este lumpem proletariado constituiu a maior fonte de recursos humanos que a TV tinha acesso, pois não era, como hoje em dia, um ramo produtivo imponente que se dá ao luxo de escolher (e escolher irresponsavelmente) os melhores (ou mais convenientes) talentos. Naqueles tempos (dourados?), as nossas melhores cabeças escolhiam carreiras estáveis e tradicionais (medicina, direito, odontologia, etc.) e jamais cometeriam a sandice de trabalhar em televisão, ou de enveredar pelos intrincados caminhos do futebol, modelo-manequim, pagodeiro, apresentador, ou âncora de jornais nacionais.
Não por culpas individuais, pois que ninguém tem culpa pela mediocridade, ignorância e despreparo próprios, estes pioneiros ocuparam os seus espaços no faroeste, desbravando os bastidores da Tupi, Rio, Excelsior, Continental e... Globo. Quando – não por méritos próprios, mas por injunções tecnológicas, políticas e de mercado – a televisão deu o seu grande salto, os pioneiros foram recobertos com uma aura de talento, competência e genialidade, processo este que não resiste a um sopro de razoabilidade. Seguramente, dentre estes pioneiros (garantindo a regra) alguns eram possuidores de talento, cultura e inventividade, o que lhes devia ser doloroso conviver com tanta mediocridade em tão pequeno espaço.
A verdadeira tragédia deste processo de seleção não está situada na cooptação dos pioneiros, pois esta se dava dentro de condições extremas de penúria e descrédito, mas na escolha da segunda e terceira gerações televisivas. Neste momento, o ramo empresarial televisivo detinha as condições objetivas de impor condições e critérios de seleção e salários competitivos, mesmo acima de outros ramos empresariais. A perpetuação do despreparo e da mediocridade na TV brasileira se deu na megalomania da TV Globo em fase monopolista – tudo que fazia dava certo, independente do conteúdo – mancomunada com a ditadura militar. Nesta quadra, as escolas e tendências administrativas sofreram inovações heterodoxas, passando-se a um criativo processo revolucionário de administração através de parentesco, cama, banho, mesa e vícios. Moços e moçoilas mal saídos da puberdade, deseducados e semialfabetizados foram arrebanhados para as camas, festas e convescotes de velhos “artistas e diretores” e, como disfarce, assumiram empregos artísticos na televisão. Esse processo de taylorização da produção televisiva deu certo, ganhou legitimidade (banalização) e perdura, graças a um nivelamento por baixo, por ter sido imitado pelos concorrentes.
Autonomia estético-ideológica
O certo é que as consequências redundam na exploração desenfreada de um filão comercial onde a boa-fé de milhões e milhões de telespectadores é manipulada e a paciência dos espíritos mais críticos é desafiada. Este estado de coisas, entre nós, tem patrocinado os mais vexaminosos momentos culturais (?), desaguando numa verdadeira sucessão de porradaria ética na nossa autoestima que já anda lá pela bola-sete.
Reproduzindo-se mais célere que coelhos em eterno cio, os nossos gênios da mídia conseguem exalar mediocridade por todos os poros em todos os canais, exceto a TV Senado, onde as eventuais sandices e atentados à gramática ficam sob a responsabilidade de suas excelências.
Assintindo às TVs comerciais ficamos com a nítida impressão de que os programas são povoados por analfabetos, idiotas, retardados, psicopatas e sádicos, todos eles escolhidos a dedo. Os ratinhos, as márcias, as anas marias, os leões são os frutos coerentes com as ambições e limitações dos controladores midiáticos.
A entronização e perpetuação do kitsch se dão em escala suficiente para apaziguar as consciências intelectuais que não idealizam nada mais artístico ou cultural que uns Jô Soares ou Planetas & Cassetas eivados de vícios e cacoetes autopromocionais de gosto duvidoso e mediocridade consagrada.
A produção televisiva (re)produz os incontáveis pesadelos que são compartilhados por milhões de cidadãos submetidos à domesticação ideológica do conformismo, seja simbólico ou consumista. Nos palcos e interiores dos estúdios (que se transformaram em verdadeiros picadeiros), foram instalados e são administrados verdadeiros manicômios estilizados, onde desfilam a fina-flor do gosto bizarro, onde a bundalização das ideias está a nos indicar que criatividade e talento mudaram-se de mala e cuia, do cérebro para os glúteos e o sucesso ou fracasso artístico fica condicionado ao trottoir que expõe as partes pudentas, mas que vende as consciências.
Em uma longínqua década de sessenta, onde éramos mais puros e crédulos, Edgar Morin já nos alertava para o fato de que, sendo a cultura de massa um diálogo desigual entre uma produção e um consumo, a “ideia da cultura de lazer, sua obscura finalidade, é a vida dos olimpianos modernos, heróis do espetáculo, do jogo e do esporte” e, desta forma “essas novas mercadorias são as mais humanas de todas, pois vendem no varejo, os ectoplasmas de humanidade, os amores e os medos romanceados, os fatos variados do coração e da alma”. (Morin, 1975: 63 – 9).
Esta ausência de autonomia estética nos concede autoridade para afirmarmos que A Casa dos Artistas não tem limites e o No limite mais parece a casa da mãe Joana.
BUCCI, Eugênio, Quanto vale a sua privacidade? in Revista do Professor – Escola, AbrilCultural, abril/2002.
MORIN, E. Cultura de Massas no Século XX (O Espírito do Tempo). Rio de Janeiro: Forense / Universitária, 1975.
In. A memória do tempo em nós