Marcelo Cavalcante
Certa vez, não com intenções anarquistas, transformei a sede o PCdoB de Teresópolis num autêntico acampamento sem terra. Por quase um mês o cenário foi reconfigurado e a sala de reuniões se transformou em dormitório, a cozinha – que servia apenas cafezinho – passou a produzir refeições familiares e a secretaria transfigurou-se num play à disposição de seis crianças endiabradas.
Sempre tive reservas quanto a me filiar a partidos políticos. Foi numa época específica, por imposição de circunstâncias que me filiei ao PCdoB. Em Teresópolis, a sede do partido ficava num sobrado, na praça Santa Teresa, a principal da cidade.
Certa manhã, de frio intenso, chega um cidadão meio estropiado, algo desconfiado, solicitando ajuda. Tinha passado a noite na rua com a família e estava desesperado. Contou que buscou abrigo na marquise da igreja, mas que foi afugentado pelo padre.
Nada mais coerente, já que estava em terreno comunista, do que atender àquela solicitação.
– Tudo bem. Chama a família e entra.
A família era composta por ele, a esposa e seis filhos. Uma escadinha na qual o mais velho tinha treze anos.
Era uma legítima família de sem terra, fugindo de problemas (não explicaram claramente do que se tratava) no Paraná.
Diante daquele rigoroso frio, providenciei a compra de colchonetes e cobertores e a sede do partido se transformou num pequeno acampamento, com crianças correndo por todos os cantos. Aquela calamidade político-familiar durou por quase um mês e, se não fui censurado abertamente, alguns olhares de filiados tinham intenções assassinas.
Escrevi a letra de Pontais pensando no exército de sem terra que vive sem pouso certo, bolando por este país desigual. Pensando nas crianças condenadas a uma infância de inseguranças e privações em função de uma estrutura fundiária secularmente perversa. Coincidentemente era a música que estava acabando de ser gravada e mixada e eu ficava escutando continuadamente, para ver se estava legal.
Numa tarde daquelas, mostrei a canção ao casal que não se interessou nadica de nada. As crianças, menos ainda. Deixei o aparelho de som na sede do partido e no dia seguinte, quando lá cheguei, eles estavam escutando o trivial que tocava nas rádios – Chitãozinho e Xororó e sertanejos outros.
Perguntei se gostaram da música do Chico, Levantados do chão, e nem conheciam. Não perguntei se conheciam Ladainha (Gilberto Gil), Funeral de um lavrador e muito menos se sabiam da existência de uma peça de teatro intitulada Morte e vida severina.
Saí dali com um travo amargo na alma e a certeza de que a lição estava dada: não se melhora o mundo quando ele não está interessado na nossa concepção de melhoria, quando ele acha que conquistar direitos é consumir as quinquilharias do mercado.